Poa Jazz e o músculo da audição depoimento Felipe Azevedo

*Depoimento originalmente postado na página do facebook do Porto Alegre Jazz Festival, com alguns acréscimos aqui.

AQUECIMENTO:

Meu envolvimento com esta edição do Poa Jazz Festival iniciou efetivamente no dia 19 de janeiro, na palestra do produtor cultural e músico francês Jacques Figueras – “Novo Cenário Musical”, no Studio Clio.

A presença de jovens músicos e poucos da minha geração aguçou minhas orelhas. Por quê? Que acorde é este?  Nas conversas com alguns colegas e burburinhos percebi que muitos ali já conheciam o produtor via mundo virtual, especialmente o seu canal no youtube. De minha parte, pouco ou quase nada sabia a respeito das ideias de Figueras, exceto um texto seu em recente publicação na revista Guitar Player. Dicas práticas, inteligentes, criativas e focadas estabeleceram o norte nas falas de Figueras. Em síntese, atenção, foco e continuidade, dispensando totalmente ideias “mágicas” e “mirabolantes”.

Mesmo com o convite super bacana do Carlos Badia – curador do evento – para assistir a tudo, por motivos profissionais consegui efetivamente estar presente a partir da segunda noite, 21 de janeiro.

EXERCITANDO o MÚSCULO da ORELHA:

Durante o percurso de chegada no Centro de Eventos, fato que possibilitou a mim e a minha esposa irmos “entrando no clima” jazzístico, na medida que avançávamos pelos ambientes do Barra Shopping, cartazes e vários materiais gráficos iam nos sinalizando, em meio à vida cotidiana das lojas e público, que algo sonoro estava a “perfumar” os espaços, escadas e vitrais.

Não deu outras! A Poa Jazz Band nos deu as boas-vindas ao som de um jazz estilo Dixieland numa formação instrumental típica: Sousafone, Trompete, Washboard, Violão e Saxofone. A recepção simpática e cortês dos atendentes, o clima visual e funcional do centro de eventos – plateia, palco e loja de souvenires – manteve suspenso no ar o tom de reforço das primeiras impressões: estamos pulsando!

SHOWS e MASTERCLASSES –

Da “Kula Jazz” ao “Mani Padme Trio”, do “Julio Herrlein Quarteto” ao “Adrian Iaies e Rodrigo Agudelo”, e finalmente, do “Alegre Corrêa Grupo” ao “Jorginho do Trompete” a complexidade harmônica, os tempos alternados, as politonalidades, as heterofonias, o suingue, os improvisos personalizados em diálogo contínuo entre os instrumentos, o som cristalino das guitarras semi-acústicas, a visceralidade sonora, o fino trato e elegância dos artistas com a plateia e vice-versa, o cerimonial super à vontade do Paulinho Moreira apresentador totalmente a ver (!), o aplauso e vibração contagiante do público; toda esta parafernália de frequências praticamente se afinaram ao mote da fala do Alegre Correa em sua masterclass: “tensão e repouso, inspira e expira, a música é frequência, escuta primeiro!

Mesmo não tendo estado na primeira noite do evento, de certo modo, de longa data já acompanho em palcos e masterclasses desde 1993 os trabalhos dos violonistas Paulo Belinati e Marco Pereira, e também do Rodolfo Stroeter (produtor e contrabaixista do Grupo Pau-Brasil), André Mehmari (pianista que tive a alegria de conhecer e conversar detalhadamente sobre contraponto e polifonias em sua primeira vinda a Porto Alegre, num show com a Ná Ozzetti), Monica Salmaso (que conheci pessoalmente em 2003 e em 2004 registrou sua belíssima voz em meu terceiro álbum “Percussìvé ou a prece do louva-a-deus”- 2007) e o Tutty Moreno, baterista desde os primeiros álbuns da cantora, compositora e violonista Joyce. Entretanto, lamentei profundamente não ter assistido e conhecido o trabalho do “Duo bailado”, Marcos Paiva e Daniel Grajew, e torço que logo consiga faze-lo!

Trazendo para uma perspectiva de gosto e afinidades musicais, dois trabalhos realmente me tocaram na alma: “Kula Jazz” e “Mani Padme Trio”.

Curiosamente, em ambos, o garimpo por uma palavra ou expressão que traduza seu movimento musical: Kula, que segundo o antropólogo austríaco Bronislaw Malinowski (1884-1942), significa “trocas culturais entre tribos da Nova Guiné”, na música do grupo, troca e improvisação coletiva contínuas; e Mani Padme expressão oriunda do mantra tibetano Om mani padme hum, a qual se pode traduzir como “da lama nasce a flor de lótus”, ou ainda, nas palavras do baterista Ricardo Mosca, simplesmente compaixão!

Curiosamente ainda, o efeito gerado nos planos sonoros destes grupos, permite uma relação de complementaridade: os constantes fluxos e refluxos cíclicos gerados nas trocas e improvisações do “Mani Padme Trio”, algo que ocorre sem instrumentos de sopro e que sugere um fôlego intenso, e executado com instrumentos percutidos (bateria, cordas percutidas e pinçadas); se complementam com a visceralidade das improvisações do “Kula Jazz” onde a tensão é quase que instantânea e contínua, sobremaneira com muito folego e onde dois instrumentos de sopro (flauta transversal e saxofone tenor) dialogam intensamente. Ou seja, num a expansão e relaxamento sonoro; noutro, a tensão e potência contínuos. Num, tensão e expansão; noutro, inspiração e transpiração. Em ambos, a dilatação tímbrica em camadas sonoras ininterruptas, em ambos o fôlego ininterrupto.

GESTUALIDADES:

Ainda no campo das preferencias pessoais, dois músicos traduziram a mim seu toque de alma: Ricardo Mosca e Marquinhos Fê.

Cada qual a seu modo reconfigurou em suas improvisações algo atípico de um modo geral a bateristas: as execuções melódicas dos temas (Ricardo Mosca em “Cais” do Milton Nascimento, por ex.), gerando via associações tímbricas das peças do instrumento e “in passant” verdadeiros  blocos sonoros, com dinâmicas e variações dos padrões rítmicos e compassos alternados, articulações, deslocamentos rítmicos,  dinâmicas, tudo muito referenciado na melodia, nos motivos melódicos e temáticos do tema instrumental que estava sendo executado. Verdadeiras aulas de expressividade e domínio técnico!

E DAQUI A POUCO…

Vejo duas ações profundamente significativas neste evento: a presença de artistas locais que vem se mantendo desde a primeira edição; e o foco na formação e educação musical, ou seja, a base, o alicerce educacional sendo contemplado via a participação das ações do festival nas escolas de música da rede pública.

A meu ver, além de todos os vários acertos, estes em especial singularizam o Poa Jazz Festival!!

Finalmente, como bem disse o Ricardo Mosca na sua primeira fala no show do “Mani Padme Trio”: “vamos voar!!!”

CODA 1> Mesmo não tendo assistido a performance de André Mehmari, me arrisco a dizer que este talvez seja um dos poucos, quiçá um dos únicos músicos brasileiros que improvisa por intermédio da intertextualidade. Sua capacidade criativa promove a partir da improvisação sobre um determinado tema instrumental, espontaneamente e por intermédio de “citações”, encontros e cruzamentos entre Egberto, Chopin, Beethoven, Schubert,Ernesto Nazareth, Noel Rosa, Pixinguinha, Clube da Esquina, Chico Buarque, Tom Jobim, Richard Wagner, Stravinsky, uma inifinidade…de certo modo reatualizando o próprio conceito de polifonia (várias vozes) ao promover de forma original e criativa o encontro das vozes de todos estes autores e vários outros, gravitando e improvisando em torno de um único tema.

CODA 2 > Este evento também me proporcionou reencontrar e conversar pessoalmente com o mago dos sons, Hermeto Pascoal. Em 2001, dentro da programação do VIII Edição do Porto Alegre em Cena, tive a felicidade de abrir o show do Hermeto no Centro Cultural 25 de Julho. No palco, recebi o reconhecimento deste grande gênio ao meu trabalho autoral!

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