TRADIÇÃO OU VANGUARDA? Uma análise do Tamburilando Canções – Violão com Voz

Por: Guto Leite

Neste sábado, dia 4 de agosto, na Palavraria, haverá o lançamento de um livro que consiste na última etapa de um interessante projeto financiado pela Funarte. Trata-se de Tamburilando Canções – Violão com Voz, de Felipe Azevedo, artista que há 15 anos vem construindo uma carreira de cancionista sólida e de equilíbrio peculiar entre tradição e vanguarda.

O projeto é composto por um site, no qual o visitante toma contato com a proposta e a sonoridade do trabalho; um CD, realização musical das concepções estéticas do artista; e de um livro, com ensaio, análise de canções, entrevista e bastante informação sobre todo o processo. Como o formato do primeiro convida à visita e à interação, me deterei nos dois últimos, em que acredito estarem as reflexões mais importantes.

A proposta do CD Tamburilando Canções – Violão com Voz, de Felipe Azevedo, me parece clara desde os primeiros acordes. Nada de violão a serviço da voz, muito menos de voz a serviço do violão. Os dois instrumentos dialogam todo o tempo e, portanto, cabe sentir as canções como uma relação entre um e outro.

Linha de Impasse (Thiago Amud, Luís Mauro & Felipe Azevedo), por exemplo, maracatu que abre o trabalho, começa com um violão mais ou menos neutro e logo despontam estes versos: “Vinham do silêncio das matas / rataplans e chibatas / debelando Xangôs”. Assim que, em seguida, os versos são repetidos, o violão desperta de sua condição de acompanhante e desenha uma linha autônoma junto com o que está sendo cantado. Se não me engano de impressão, com a repetição dos versos, são eles agora que acompanham o violão, que atraiu a atenção do ouvinte com seu desempenho. Ou seja, num espaço de poucos segundos, os planos em destaque da canção se alteram, levando o ouvinte a atentar-se para outro elemento, sem dar tempo para que sua memória tenha se esquecido do momento anterior.

Esse recurso perpassa o álbum e parece estar em sua proposição mais íntima. Na audição, adiciona outra camada de tessitura sonora, pondo em evidência uma sensação de perspectiva, não muito comum e cada vez mais ausente na canção popular brasileira. De boas raízes, como Dorival Caymmi, por exemplo, essas “canções em 3D”, plásticas o bastante para gerar uma noção de frente e fundo por meio da movimentação dos planos, ganham muita força e, por si só, justificam que se ouça e se discuta o álbum.

Essa forma inusitada de composição passeia por muitos gêneros ao longo do CD. Além do maracatu da canção abre-alas, temos as excelentes Balagulá, Xibimba (coco/ samba de roda), Tamburilando, Tecendo a Cidade (rap-coco) – parceria com Richard Serraria e forte candidata a melhor canção do trabalho – e A Janela Entreaberta (valsa, parceria com o poeta Marco de Menezes); além de Kibungo Gerê (alujá), Ribeira, Fronteira (milonga, também com Menezes e bela participação de Bebeto Alves), entre outros gêneros e canções.

Ouvindo novamente o álbum após muito tempo – tive o prazer de ouvi-lo recém-saído do forno há quase dois anos -, arrisco dizer que o recurso é mais eloquente nas canções mais rápidas, naquelas em que voz e violão trocam de papéis de maneira mais ágil. Nas canções mais lentas, a sensação ainda é a de que a voz chama para si o protagonismo, o que é muito natural, se pensarmos que estamos interessados no motivo e na forma como ama ou sofre a voz da canção. Já que o risco é permitido, uma segunda hipótese também tem lugar, a de que essa organização tem muito do duelo honrado, em que uma e outra voz se desafiam admirando o adversário. Cena encontrada na narrativa de alguns gaúchos exemplares, como Martín Fierro, mas também, por exemplo, na belíssima Quando o Samba Acabou (1933), de Noel Rosa. É possível que Felipe Azevedo tenha dado forma a esse aspecto cultural tão forte na região do pampa ao escolher voz com violão e não voz e violão? Deixo soar.

Já o livro Tamburilando Canções – Violão com Voz, este que será lançado dia 4 de agosto na Palavraria, compõe-se exatamente das pesquisas, esforços, criações e interpretações do artista para chegar à estética do álbum. Marcam claramente seu amadurecimento como pensador numa iniciativa que, se não inédita, certamente é muito rara entre cancionistas. É um livrão em todos os sentidos. Cheio de boas informações, formas diferentes de se analisar canção popular, além da análise de canções presentes no CD. É interessante para quem reflete sobre arte, importante para quem estuda canção popular e imprescindível para violonistas-cancionistas, já que ali há uma perspectiva bastante peculiar de composição que merece ser considerada.

Mas duas perguntas ficam ao pensarmos no livro. Que movimento é esse do artista que cria e teoriza sobre sua criação? O que esse movimento indica sobre o objeto criado e seu entorno?

A resposta à primeira questão poderia identificar Felipe Azevedo como um artista de vanguarda. É tipicamente de vanguarda esse procedimento de explicar aos demais como se organiza sua própria arte. Mas não creio que essa hipótese se sustente. O livro é fortemente didático-participativo em sua totalidade. Além disso, não há o movimento de rechaçar a tradição, mas de aproveitá-la e até mesmo reverenciá-la. Essa postura ainda é mais explícita se considerarmos o CD, que contém, por exemplo, a gravação do batuque Oi Cangorô, da primeira década do século passado, ou o site, que convida o visitante a sentir a diferença entre “violão com voz” e “violão e voz”.

Talvez uma resposta à segunda questão responda à primeira. Há um tanto de angústia de boa vontade em todo o projeto, como um jogador que precisa, quase, bater escanteio e cabecear, calejado pela inapetência dos companheiros. Não os companheiros artistas e teóricos, que fique claro – todos muito bem convidados para figurar junto na arte e nas análises. Mas talvez os companheiros críticos. Com receio do vazio, o artista perfaz todo o trabalho: cria um CD vigoroso (que, num mundo ideal, esperaria o movimento crítico exógeno), põe no ar um site para familiarizar o ouvinte e concretiza um livro de ensaios, informações, análises cancionais etc.

É típico da modernidade esse desdobramento em autor e crítico (adaptando proposta de Octavio Paz)? É uma característica da já naftalínica binomia vanguarda e subdesenvolvimento? É particularidade da cena artística local, pra lá de desamparada? Desvelando essas perguntas, o trabalho de Felipe Azevedo propõe respostas firmes às relações entre voz e violão na canção popular brasileira. Primeiro sonoramente, com o CD lançado em 2011. Agora criticamente, com o livro que podemos ter em mãos.

LINK DA FONTE: http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2012/08/uma-analise-de-tamburilando-cancoes-violao-com-voz-3842276.html

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