Móbile de sons, versos e imagens
Texto Felipe Azevedo*
Postado originalmente no Nonada em 27/07/2015
Meu primeiro contato com o álbum Corpo de Baile ocorreu quando li uma entrevista com a cantora Mônica Salmaso publicada pelo jornal O Globo, quase um ano atrás. Na ocasião a cantora, ao falar deste novo trabalho, também esboçou comentários sobre o cenário da música popular brasileira atual. Naquele momento, suas considerações desencadearam uma série de manifestações nas redes sociais favoráveis ou não às suas opiniões e posicionamentos.
O que ficou claro para mim desde então e reitera-se agora é que desde o seu primeiro álbum Voadeira(1999) aos atuais, esta artista sempre se pautou por uma coerência e profunda responsabilidade nas suas escolhas musicais; e mais uma vez, neste caso, pela obra de dois grandes mestres do cancioneiro popular do nosso país, Guinga e Paulo César Pinheiro.
Existem muitas maneiras de interpretar um espetáculo fruto de um álbum, ambos resultantes de uma pesquisa de fôlego. Opto pelo caminho onde enxergo proximidades, cruzamentos e singularidades.
Corpo de Baile contempla um conjunto de quatorze canções de autoria de Guinga e Paulo Cesar Pinheiro, todas resgatadas numa pesquisa investida por Mônica ao revirar um “baú de achados” de obras inéditas, parcerias de ambos os compositores em torno de 40 anos atrás, e que estavam praticamente escondidas em função do desfazimento da parceria. A única não inédita do álbum é Bolero de Satã que já havia sido registrada por Elis Regina no disco Essa Mulher (1979). As canções escolhidas contemplam gêneros como Habanera (“Curimã”, “Fim dos tempos”, “Porto de Araujo” e “Quadrão”), Moda de viola com acentos de Coco (“Violada”), Samba-choro (“Noturna” e “Sedutora”), Marcha-rancho (“Rancho das sete cores”), Fado (“Navegante”), Valsa (“Corpo de baile” e “Nonsense”), Bolero (“Bolero de Satã”), Cantiga (“Procissão da Padroeira”) e Modinha em 6/8 (“Fonte abandonada”). Pode-se dizer que o pulso predominante que subjaz no repertório é o da Habanera que por vezes também soa como um Lundu mais lento, inclusive estas quatro (“Curimã”, “Fim dos tempos”, “Porto de Araujo” e “Quadrão”) soam como primas-irmãs de “Saci” também parceria da dupla, composta possivelmente também neste período das do álbum.
Para garantir a gama de cores e timbres que a intérprete sentiu necessidade de preservar e realçar, opção feita juntamente com Teco Cardoso, seu parceiro na direção musical e produtor do disco, a artista elencou um verdadeiro time de bambas – músicos. Cito alguns tais como o Quarteto de Cordas Carlos Gomes, o Quinteto de sopros Sujeito a Guincho, Neymar Dias, Robertinho Silva dentre outros; e arranjadores como Teco Cardoso, Nailor Proveta, Tiago Costa, Luca Raele, Nelson Ayres, Paulo Aragão e Dori Caymmi.
Aqui vale destacar um ponto central na maturidade musical desta cantora ao optar por uma formação e sonoridade plenamente camerística em todas as canções do CD. Percebe-se claramente que possivelmente o centro desta escolha focalizou-se no violão de Guinga, músico com forte genealogia em Garoto (Anibal Augusto Sardinha) e que tem um traço marcante na sua execução e processo autoral: um violão de caráter mais “horizontal” (nas palavras do próprio Guinga, “violão barroco”) e menos “vertical”, blocado (predominante na Bossa-nova) e que descende do choro nos contracantos, por influência de Garoto, Dilermando Reis e Pixinguinha, além é claro, de Villa-Lobos.
Ou seja, os arranjos repletos de contracantos e contrapontos referenciados, repito, possivelmente também no violão de Guinga, criam espaços em que a voz da cantora se entrelaça com os sons dos instrumentos numa espécie de “móbile sonoro” onde sua voz não se coloca sobre a instrumentação, mas soa junto com esta.
Desconheço outra cantora brasileira que resguarde tão claramente este traço marcante, o de sua voz soar e atuar como um instrumento em meio a outros e se entrelaçar com a gama de timbres gerada.
Do casamento do violão de Guinga (“barroco” e de “acordes abertos”) com a sonoridade imagética da poesia de Paulo César Pinheiro surge o efeito mimético muito considerado nos estudos de canção. Da junção de ambas as linguagens, texto e música, resulta uma nova, híbrido onde a gestualidade melódica da voz que canta, corporifica e entoa o que a letra materializa em sentido e imagem. Ou ainda, aquilo que a melodia sugere como fala camuflada é resgatada e posta à tona pela letra da canção e posteriormente, pela voz que canta, aqui no caso, da própria Mônica Salmaso.
Desse modo, o material original – gravações de violão com a voz – matéria “bruta” de sons e palavras transformadas em canções, ao ser revestido em arranjos com nova instrumentação não se desligou da estrutura matriz, apenas incorporou novos sons.
Saindo do álbum e indo para o show que assisti no sábado dia 25 de julho no Teatro São Pedro, Mônica manteve o mesmo patamar de excelência. Prezou pela formação camerística trazendo além do Quarteto de cordas Carlos Gomes – Claudio Cruz (Violino I), Adonhiran Reis (Violino II), Gabriel Marin (Viola) e Alceu Reis (Violoncelo), a dobradinha de sopros de Teco Cardoso (Saxofones e Flautas) e Nailor Proveta (Clarinete e Saxofones), Neymar Dias (Viola Caipira e Contrabaixo Acústico), Paulo Aragão (Violão de oito cordas) e Nelson Ayres (Piano). Assim, a trama de sons e timbres dos instrumentos no palco, juntamente com a voz da cantora soando também como um instrumento, tendo como ponto de referencia o violão de Guinga (mantenho esta percepção); tudo possibilitou um resultado sonoro, tanto no CD, quanto no show de extrema coerência e equilíbrio, denotando daí a maturidade musical e artística desta grande cantora brasileira em plena produção atual.
Complementando o quadro de recursos e propiciando uma imersão sensorial de alto refinamento e bom gosto, o vídeo-cenário do Cineasta Walter Carvalho constrói durante todo o show uma costura onde imagens projetadas numa tela de tule cobrindo todo o palco se sobrepõem aos músicos, aparecendo e sumindo numa espécie de “esfumaçamento” de sons e imagens, gerando renovadas e deliciosas surpresas nos sentidos da plateia.
Aquilo que a sonoridade geral evoca, as imagens projetadas costuram, através das cenas que funcionam como “ligas” reproduzindo na sua aparição e recolhimento a mesma espacialidade gerada pelos sons dos instrumentos nos arranjos das canções. Reforçando este efeito, o desenho de luz, refrata a mesma textura numa espécie de “móbile” (novamente a metáfora) de sons, versos e cenas.
Por fim Corpo de Baile é mais que álbum e show. No meu ponto de vista é o exemplo musical que melhor personifica a frase que o bandolinista Hamilton de Holanda sempre insere em forma de slogan, em todos os seus álbuns: moderno é tradição. No caso de Mônica Salmaso, usando as palavras do músico e compositor Fernando Mattos, tradição difere radicalmente de convenção. Neste sentido e pegando carona com o compositor Vitor Ramil, a canção popular reatualizada em sua tradição pelas mãos de Guinga, Paulo César Pinheiro, Salmaso e tantos outros compositores brasileiros contemporâneos, pode ser também pensada como centro de uma outra história. Aflitos, doidos ou malditos, talvez este seja o bailado onde o fim dos tempos sinalize outros novos.
*Felipe Azevedo é compositor, violonista, cantor, educador musical e ensaísta. Vencedor de seis prêmios açorianos (o mais representativo do Sul do Brasil) e Mestre em Letras (UFRGS), o artista já fez turnê por países como Suíça, Noruega, Uruguai e França. Com quatro álbuns gravados e lançados, atualmente está em divulgação do seu último “Tamburilando Canções – Violão com Voz”, projeto multimídia com livro-cd e hotsite interativo. Contatos: www.violaocomvoz.com.br
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