Terão sido o Violão, juntamente com a Chihumba, espécie de harpa africana que transitou num determinado período no Brasil, instrumentos mediadores culturais? E será que continuam sendo?

Num determinado período da vida musical brasileira, por volta de 250 anos atrás (sécs. XVIII e XIX), e mais especificamente no que se refere ao Violão – a partir de 1870 – conviveram e transitaram por diversos ambientes do Brasil, instrumentos de descendência africana e ibérica:  Pluriarcos e Violões.

Especificamente, no que se refere aos Pluriarcos ou Chihumbas, a técnica de execução destes instrumentos era semelhante à utilizada na Harpa, ou seja, por dedilhados e arpejos e executados especificamente com os polegares de ambas as mãos.

A Chihumba também tinha a função de aliviar grandes jornadas, pois basicamente era executada pelo músico e escravo enquanto este caminhava e carregava enormes balaios de frutas e verduras em sua cabeça.

Escravo executando a Chihumba em longas jornadas

Escravo executando a Chihumba em longas jornadas

Devido ao processo diaspórico e devido também à sua descendência africana, este instrumento gradualmente foi segregado e desapareceu do ambiente social brasileiro.

A foto de um autor desconhecido feita na segunda metade do século XIX retratando um negro executando uma Chihumba e segurando-a sentado, denota conforme pesquisadores e historiadores, um possível “ajustamento social” e readequação das técnicas corporais utilizadas e aplicadas na execução deste instrumento.

Músico negro executando Chihumba. Foto de autor anônimo.

Músico negro executando Chihumba, segunda metade Séc. XIX. Foto de autor anônimo.

Técnicas usualmente utilizadas e aplicadas em instrumentos de descendência ibérica tais como a Viola de Arame – ou Viola Caipira de 10 cordas – e o Violão sendo agora utilizadas na execução de Chihumbas.

Não se sabe exatamente o que aconteceu, porém algumas possíveis hipóteses podemos considerar:

  • A perseguição aos negros e a segregação racial deslocaram do convívio musical instrumentos de descendência africana, dentre os quais o pluriarco ou viola d’angola;
  • Quanto à técnica de execução destes instrumentos, tudo leva a crer que pode ter havido uma espécie de “contaminação” de técnicas mútuas entre o modo de tocar instrumentos africanos – caso da Chihumba – e instrumentos de descendência ibérica – caso do Violão;
  • Os músicos negros gradativamente foram substituindo seus instrumentos – Pluriarcos e Chihumbas -, por outros de descendência ibérica – por exemplo, o Violão -, de maior aceitação social, porém, sem deixarem de perpetuar muito de suas técnicas musicais, rítmicas e corporais nestes instrumentos, configurando assim uma espécie de “resistência conceitual das culturas africanas na diáspora americana”, conforme o antropólogo Samuel Araújo;
  • Um dos traços característicos desta resistência cultural musical é o uso da polirritmia, técnica bastante presente na música africana e muito propícia num instrumento polifônico como o Violão;
  • Esta polirritmia agregada à performance do músico permite a este inserir também o evento mocional – o movimento do corpo – além do sonoro, na música executada, e neste sentido, esta raramente é entendida como fenômeno puramente acústico, segundo o etnomusicólogo Tiago de Oliveira Pinto: “Se expressa tanto por parte do músico, como do ouvinte que a “ouve” com o corpo inteiro e a acolhe”;
  • A corporalidade musical deste músico contempla um equilíbrio integrativo do que se toca (repertório), como se toca (técnica) e onde se toca (instrumento) [1]– ou seja, suas marcas corporais;
  • Exemplo notável desta espécie de simbiose é o caso do músico Eduardo das Neves (1874 – 1919), em gravação feita em 1907 pela Casa Edison, tocando e cantando o ‘batuque’ afroangolano “Oi Cangorô” de possível uso em ambientes de afro religiosidade;
  • O canto deste músico insurge dentro da canção ao se integrar no conjunto: Violão + Voz. “O músico se mistura ao instrumento”. (Monica Salmaso)
  • O Violão de Eduardo das Neves ao condensar e reproduzir em seu instrumento time-lines (linhas de tempo e padrões rítmicos) de tambores e palmas das rítmicas africanas as quais possivelmente ele ouvia no seu ambiente social e entorno, incorpora estas referências sonoras, e assim sendo, não soa apenas como violão, transforma-se também em tambor miniaturizado;
  • Este procedimento musical ao perpetuar-se na música popular do Brasil desde os primeiros registros, a exemplo de Eduardo das Neves, vai gradualmente constituindo um “modo de ser” do violão brasileiro conforme aponta a professora e pesquisadora, Teresinha Prada Soares.

Também no meu entender, não apenas de ‘acompanhamento da voz’, mas, sobretudo, um Violão Percussivo, Rítmico e integrado com a Voz, ou seja, um Violão soando, percutindo e ‘cantando’ junto com a Voz;

Por fim, o que de fato podemos constatar é que o tanto o Violão quanto a Chihumba desempenharam e continuam desempenhando – caso do Violão – uma função de mediadores culturais nos diversificados ambientes da música popular brasileira.

No caso da Chihumba, uma perpetuação da sua ancestralidade africana, ainda que de forma camuflada e de aparente “ajustamento social”, através da simbiose técnica na execução de instrumentos africanos e ibéricos, além da inserção da corporalidade musical dos músicos africanos executando instrumentos ibéricos, caso do Violão.

E neste sentido, vale ainda considerar:

Seria este o poder de síntese do violão brasileiro percebido pelo Etnomusicólogo Carlos Sandroni em seu livro ‘Feitiço Decente’, ou apenas um dos possíveis traços das tantas sínteses culturais e musicais desempenhadas por este instrumento na música popular do Brasil?

“No Rio de Janeiro, o mesmo samba pode ser interpretado, na época do carnaval por 300 ritmistas e outros cantores; e em qualquer época do ano, numa versão de câmara, por um cantor que se acompanha ao violão. Isto leva a pensar que este instrumento se reveste, na cultura em questão, de extraordinário poder de síntese” (Carlos Sandroni – Etnomusicólogo)

[1] SCHROEDER, Jorge Luiz. Corporalidade Musical: as marcas do corpo na música, no músico e no instrumento. Campinas SP, 2006.