PREFÁCIO ‘TAMBURILANDO CANÇÕES’ por FERNANDO MATTOS

Acredito que este trabalho de Felipe Azevedo irá trazer um novo aporte ao conhecimento da canção popular, que é uma das manifestações artísticas mais fecundas da cultura brasileira.

O autor é um dos mais inventivos cancionistas da atualidade. Em seu trabalho criativo, consegue realizar a síntese entre o rico manancial da tradição popular das diferentes regiões do Brasil e a originalidade motivada pelos princípios da pesquisa e da experimentação incessantes. Eu diria que seu trabalho como compositor, cantor e violonista é extemporâneo, no sentido de se colocar, inesperadamente, fora do tempo – não apenas do seu tempo (a sua contemporaneidade), mas, sobretudo, por transpor os limites estreitos da noção diacrônica (uma coisa após a outra), que muitas vezes predomina na crítica convencional.

A leitura atenta de ‘Tamburilando Canções – Felipe Azevedo – Violão com Voz’ revela algo que pode contribuir ao entendimento da música (e da arte em geral) como um fluxo contínuo que se espalha em várias direções. Compreendemos, assim, que é falsa a dicotomia entre o tradicional e o atual, pois tradição difere radicalmente de convenção.

Por um lado, a convenção é uma espécie de pacto entre aqueles que não querem ter o trabalho de se dedicar ao conhecimento do passado para gerar um possível porvir. Por outro lado, a tradição da música brasileira, em todas as suas ramificações, é uma das formas mais exuberantes de criação artística de nosso país. Há muito que investigar, há muito que descobrir e revelar desta extraordinária tradição.
Alguns, como Mário de Andrade, já fizeram sua parte.

Atualmente, outros tantos pesquisadores a estão fazendo.

É neste contexto que este trabalho de Felipe Azevedo ingressa, através da leitura da canção popular brasileira, desde suas origens na modinha e no lundu até a atualidade de suas manifestações.

Consciente de sua empreitada, o autor divide o texto em três grandes blocos, a que chama de “Poder de Síntese”: I. O violão; II. O violão com a voz dentro da canção; III. Análise das canções.

No primeiro bloco, é realizado um estudo sobre o violão como instrumento de acompanhamento na canção popular. Entretanto, não permanece em simples considerações descritivas, mas já apresenta vários fatores de desestabilização desta função de acompanhamento legada ao instrumento. O autor percebe elementos de polifonia e polirritmia trazidos pelo aspecto mocional e pela corporalidade de músicos afrodescendentes.

No segundo bloco, esta desestabilização é levada ao limite, pela incorporação de uma noção dialógica, na relação entre as partes: o violão interage com a voz, que interage com o violão. Não há mais a simples concepção de melodia principal (voz) e acompanhamento (violão), mas de interação entre ambos para produzir algo mais amplo – a canção.

O terceiro bloco, dedicado à análise de canções do CD que acompanha o livro , inicia com uma revisão bibliográfica, em que são examinados alguns conceitos dos autores mais importantes que se dedicam ao assunto, entre eles Luiz Tatit. Insatisfeito com a abordagem especificamente musical ou poética, Felipe Azevedo vai buscar em teóricos de outras áreas, como vídeo e cinema, noções que podem enriquecer o entendimento da canção e suas partes constitutivas. Destacam-se as noções de valor acrescentado e sincronização/dessincronização, conforme demonstradas por Michel Chion.

Outro fator importante, nesta obra de Felipe Azevedo, é a busca por um entendimento da canção em várias dimensões. Não apenas as relações entre voz e violão (ou “violão com voz”) são investigadas, como também são estudados, nas palavras do autor, “outros tantos elementos [que] constituem o corpo e alma de uma canção: a harmonia, a instrumentação, o tratamento técnico do material sonoro e a própria língua”.

Assim, a canção é compreendida em diversas camadas, sem hierarquização, mas através do entendimento da interação entre as partes e suas correlações com o todo. As partes são indissociáveis do todo, que não poderia existir sem as suas partes, como dizem estes versos de Gregório de Matos:

“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo todo.”

Em um nível mais abrangente, Felipe Azevedo percebe que as partes que o formam como músico também são indissociáveis: compositor, cantor, instrumentista, professor e ensaísta.

Assim, traz esta obra a público, em que discute e aprofunda concepções ligadas à canção popular brasileira, colocando-se como parte deste processo ao analisar as próprias canções, constantes no CD que acompanha o livro e que também podem ser experienciadas no hotsite.

Fernando Lewis de Mattos
Porto Alegre, 10 de fevereiro de 2011.

*Prefácio escrito pelo Compositor, Musicólogo e Professor Fernando Lewis de Mattos do livro-cd “TAMBURILANDO CANÇÕES – VIOLÃO com VOZ”  de Felipe Azevedo.