Violão com voz: as Vias! Uma reflexão sobre os “primórdios” do processo de TOCAR VIOLÃO e CANTAR.

Inúmeras vezes me questionei: de que modo aqueles compositores violonistas brasileiros que tocam, cantam e criam a partir do seu instrumento, elaboram e sistematizam tal processo na sua produção autoral de canções?

Raras vezes encontrei respostas satisfatórias e, inúmeras, bastante evasivas ou abrangentes, e sem detalhar como faz – tipo: “como é que eu faço isso aqui ó!”.

A conclusão que me parece mais evidente é que este é um processo muito pessoal e que o artista, de um modo geral, por inúmeras razões, irrelevantes aqui, não costuma compartilhá-lo coletivamente. Faz e pronto!

Em artigo intitulado Notas sobre o Violão na Canção Brasileira, a professora e estudiosa Teresinha Rodrigues Prada Soares (2007, pp. 99-111), ao discorrer sobre as diversas etapas da participação do instrumento no cancioneiro popular, salienta que […] durante vários momentos no passado, voz e violão estiveram juntos representando uma síntese dos movimentos musicais brasileiros, e aponta-se que essa parceria continuará […], uma vez que no Brasil e em outros países, o violão assumiu, dentre outros papéis, o de acompanhador da voz em grande parte do repertório da música brasileira.

A autora identifica neste percurso do instrumento do passado à atualidade, pelo menos, três vias: (1) a do acompanhamento por dedilhado; (2) a do acompanhamento por batidas e (3) uma terceira, que ela chama de radial, onde o violonista ao acompanhar a voz que canta, insere “verdadeiros arranjos de melodias durante os acompanhamentos que viram quase solos”.

Saliento que até aqui ainda estamos falando de uma perspectiva do violão exercendo uma função de acompanhamento da voz, certo?

Mas, e se invertermos esta polaridade?

A voz inserida no arranjo do violão a ponto de praticamente acompanhá-lo e sendo este violonista também aquele que canta, portanto exerce ambas as funções, tocar e cantar?

Uma voz que se integra ao violão no transcurso da canção?

Uma voz que acompanha o violão e não o violão que acompanha a voz?

Seria esta uma quarta via, se nos mantivermos na linha de raciocínio da autora?

E a escuta desta canção modifica-se?

Sobre a terceira via a autora ainda nos diz que “se tem a impressão de que o acompanhamento da voz virou música de câmara” e quando isso acontece, também temos a sensação de que é difícil encontrar uma clara distinção entre a música popular e a clássica no Brasil.

Talvez daí o comentário que já ouvi inúmeras vezes de que canções onde o violão tem uma presença mais totalizante, saindo do referencial de apenas acompanhar tendem a “soar música instrumental”.

Esclareço que o estilo ‘música instrumental’ seria aquela em que o violão sola a melodia e executa simultaneamente o acompanhamento nas batidas, dedilhados e acordes, e que, sobretudo, não cantaapenas toca.

Exemplos de violonistas que tocam e executam seu violão nestes moldes e que também acompanham cantores são Ulisses Rocha, Marco Pereira, Paulo Bellinati, Yamandu Costa, Rafael Rabello, etc.

Violão com Voz I

Retomando a ideia de uma (4) quarta via – a do violão com a voz -, entendo que é possível encontrar seus primórdios no transcurso histórico do violão no cancioneiro popular do Brasil, lá nos registros fonográficos, por volta de 1900-1910, nas gravações da Casa Edison (RJ), sob a coordenação de Fred Figner.

Especialmente, nas primeiras gravações de um artista chamado Eduardo das Neves (1874-1919) negro, cantor, compositor, letrista, palhaço de circo e violonista, numa canção intitulada ‘Uma Festa na Penha’, onde no final desta, em torno de 20 segundos, o artista toca e canta em dialeto afro-brasileiro o cântico ‘Oi Cangorô”.

Neste pequeno trecho o qual detalho no vídeo abaixo, este compositor, ao inserir o seu canto no arranjo do seu violão que está literalmente “bordando bordões” (solo com as cordas graves) no percurso da canção, consegue provocar uma escuta distinta, pois tudo se integra neste seu fazer musical: a voz, por vezes, acompanhando um ‘Violão Percussivo’ que também ambienta, no arranjo, o seu cântico quase nagô!

Outros exemplos…

Outro exemplo a mim muito pertinente é o do disco de canções praieiras do compositor, violonista e cantor baiano Dorival Caymmi, intitulado ‘Caymmi e seu Violão’ de 1959.

Num período em que as grandes orquestrações eram a marca das produções fonográficas, este artista corajosamente gravou em disco inteiro suas canções praieiras apenas com seu violão, vindo inclusive a influenciar de modo singular, com sua concepção musical e violonística, o pensamento musical de outro violonista e cantor também baiano, João Gilberto; conforme atesta a obra ‘Caymmi e a Bossa-Nova’ escrita por Stella Caymmi, neta do Buda nagô!

Violão com Voz II

Entendo que pensar a canção na perspectiva da voz acompanhando o violão difere totalmente daquela em que o violão acompanha a voz!

Neste sentido, violão e voz atuam como protagonista e coadjuvante numa permuta constante e dinâmica de papéis, por vezes se “digladiando”, no transcorrer da canção, e em outras, ‘dialogando’, gerando assim sensações múltiplas quanto às possíveis escutas (inclusive a de “soar instrumental”), pois uma canção tocada e cantada deste modo solicita uma audição mais ampla e simultaneamente mais reduzida, focada, vertical.

Vale lembrar aqui a máxima sobre o violão dita pelo grande violonista e maestro uruguaio, Abel Carlevaro: “o violão é como a água que se molda em qualquer recipiente”.

Se considerarmos que este recipiente seja a canção e o violão maleavelmente moldado nesta com a voz, certamente podemos chegar a uma quarta via (violão com a voz), possibilitando assim outras e renovadas escutas daquele compositor e violonista que toca e simultaneamente canta suas próprias canções.

Felipe Azevedo Compositor

*Extraído do livro-cd “Tamburilando Canções – Violão com Voz” de Felipe Azevedo, pp: 11-12.